Tributação de dividendos: o que (ainda) está indefinido e o que a Lei das S.A. já define
Introdução
A discussão sobre a volta da tributação de dividendos ganhou força com o PL 1.087/2025, mas o desfecho permanece em aberto. Enquanto isso, a Lei das S.A. (Lei 6.404/1976) continua determinando como e quando pagar dividendos, e esses detalhes societários fazem toda a diferença na hora de planejar 2025 e além. Neste artigo, alinhamos o estado da arte do projeto de lei, relembramos a isenção vigente (Lei 9.249/1995) e aprofundamos o que a LSA já estabelece sobre dividendo obrigatório, hipóteses de retenção, reservas e prazos de pagamento. Pontos que impactam qualquer estratégia de distribuição.
1) O que o PL 1.087/2025 propõe (e por que isso afeta dividendos)
O PL 1.087/2025 faz parte da chamada “reforma da renda” e avança em duas frentes capazes de alterar decisivamente a lógica atual de distribuição. A primeira é a criação de um Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM) para altas rendas, que considera a carga efetiva do contribuinte ao somar rendimentos de diferentes fontes — incluindo dividendos — e, se o resultado ficar abaixo de um patamar mínimo, aplica uma complementação no ajuste anual. Paralelamente, o texto trabalha com a retenção na fonte de 10% sobre lucros e dividendos pagos, que funcionaria como antecipação a ser compensada na declaração anual. Em conjunto, esses mecanismos deslocam o país do regime de isenção plena (vigente desde 1996) para um modelo híbrido, com piso de tributação efetiva no IRPF e retenção no momento do pagamento.
Um segundo eixo sensível são as regras de transição para os chamados “estoques de lucros”. A leitura dominante entre análises técnicas sustenta que dividendos baseados em lucros acumulados desde 1995 permaneceriam isentos se declarados ainda em 2025, ainda que pagos depois. A premissa seria dar fecho ao ciclo da isenção iniciada em 1996, minimizando disputas sobre retroatividade. Contudo, essa “janela” tributária só é útil se viável societariamente: companhias, sobretudo S/As, precisam compatibilizar qualquer estratégia com as regras corporativas de declaração e pagamento previstas na LSA (voltaremos a isso ao tratar do art. 205, §3º).
Há, ainda, debates relevantes sobre alcance internacional e situações específicas: tratamento de dividendos transfronteiriços, condições para crédito de imposto e exceções para determinados perfis de companhia ou investidor, buscando evitar bitributação e preservar a competitividade para capital externo. Em grupos com estrutura global, esses detalhes conversam com acordos de bitributação, cadeias de holdings e políticas de distribuição entre jurisdições.
No plano político, o projeto segue em Comissão Especial da Câmara, com substitutivos em discussão e trajetória sem data definida para Plenário. Isso impõe planejamento com opcionalidade: simular cenários (com/sem retenção; diferentes recortes do IRPFM; efeitos para não residentes), calibrar políticas de dividendos e manter a documentação societária pronta para uma resposta rápida quando houver texto final.
2) O que vale hoje: a isenção da Lei 9.249/1995
Até mudança legislativa superveniente, segue vigente a isenção de IR sobre lucros e dividendos distribuídos por pessoas jurídicas tributadas pelo lucro real, presumido ou arbitrado, nos termos do art. 10 da Lei 9.249/1995. Esse é o regime-base que fundamenta as discussões de transição do PL 1.087/2025 e, por ora, continua norteando a prática de mercado.
3) O que a Lei das S.A. já define (e que você precisa respeitar)
Dividendo obrigatório (art. 202). A LSA atribui ao estatuto social a tarefa de fixar o critério do dividendo obrigatório. Se o estatuto for omisso, aplica-se a regra supletiva: 50% do lucro líquido ajustado deve ser distribuído (após as destinações legais). É comum companhias estipularem 25% em estatuto — mas trata-se de opção estatutária, não do padrão legal. Esse “piso societário” precisa dialogar com o fluxo de caixa e com o plano de investimentos da companhia.
Retenções lícitas (arts. 196, 197 e 202, §§4º–5º). A LSA permite reter lucros, em hipóteses estritas e bem documentadas. Pelo art. 196, a AGO pode reter parcela do lucro com base em orçamento de capital aprovado (até 5 exercícios, com revisões anuais, atrelado a projetos e fontes de financiamento). Pelo art. 197, quando o dividendo obrigatório excede a parcela realizada do lucro (ex.: ganhos contábeis sem caixa), admite-se a reserva de lucros a realizar, para pagamento quando houver efetiva realização. E, pelo art. 202, §§4º–5º, se a distribuição colocar em risco a situação financeira, a administração pode propor restrição ao pagamento do dividendo obrigatório e constituir reserva especial para pagamento futuro, sujeita a restrições de utilização. Cada uma dessas saídas exige lastro técnico (orçamento, pareceres, notas explicativas) e deliberação formal; sem isso, a retenção vira passivo certo.
Limites às reservas (art. 198). Destinações facultativas (reservas estatutárias, retenções adicionais) não podem prejudicar o dividendo obrigatório, salvo as exceções legais acima. Em governança, a mensagem é simples: prioridade para as regras do art. 202; só depois vêm as escolhas discricionárias.
Prazo de pagamento (art. 205, §3º). Aqui está a pedra no sapato de quem cogita “declarar em 2025 e pagar mais à frente” apenas para capturar eventual janela tributária: a LSA determina que o dividendo declarado deve ser pago em até 60 dias, salvo deliberação em contrário da assembleia, e sempre dentro do mesmo exercício social. Em outras palavras, companhias que declarem dividendos em 2025 precisam se organizar para pagar em 2025 (sendo possível alongar o prazo, mas sem ultrapassar o exercício). A jurisprudência e a prática sancionadora da CVM reforçam a leitura estrita desse comando, justamente para proteger o acionista e dar previsibilidade ao mercado.
4) Implicações práticas para empresas (abertas e fechadas)
Comece revisitando o estatuto: ele define o dividendo obrigatório (muitas vezes 25%; se omisso, 50% pela lei) e pode trazer regras complementares de distribuição. Em seguida, simule cenários com e sem retenção na fonte de 10%, com diferentes cortes do IRPFM e perfis de acionistas (residentes, não residentes, fundos). Se a discussão interna envolver “janela 2025”, confronte qualquer ideia com o art. 205, §3º (prazo e exercício). Caso a companhia pretenda reter lucros, siga o roteiro das exceções legais: orçamento de capital e/ou lucros a realizar, com documentação robusta e deliberações formalmente impecáveis. Por fim, governança documental: atas, políticas de dividendos, notas explicativas e controles integrados (especialmente em grupos com múltiplas controladas) reduzem risco perante auditoria, CVM e Judiciário — e evitam que uma decisão de caixa viável se transforme em passivo societário.
Conclusão
Mesmo com o PL 1.087/2025 em debate, a régua que vale hoje continua sendo a isenção do art. 10 da Lei 9.249/1995 e, do lado societário, a disciplina da LSA: quanto distribuir (art. 202 e exceções), como reter (arts. 196 e 197, além do art. 202, §§4º–5º), quando pagar (art. 205, §3º). Para conselhos e CFOs, o jogo é de planejamento com opcionalidade, compliance societário e agilidade para ajustar a política de dividendos quando (e se) o Congresso bater o martelo. Até lá, rigor na documentação e atenção à linha do tempo societária valem mais do que qualquer aposta.
Fontes (leitura recomendada)
Capital Aberto — “Tributação de dividendos segue indefinida”. Panorama do PL 1.087/2025, transição e debate sobre “declarar em 2025 e pagar depois”.
Câmara dos Deputados — Ficha de tramitação do PL 1.087/2025. Comissão Especial, cancelamento de urgência e eventos de agenda (audiências).
Planalto — Lei 9.249/1995 (art. 10). Base legal da isenção de dividendos vigente desde 1996.
Planalto — Lei 6.404/1976 (texto consolidado). Regras de dividendo obrigatório (art. 202), orçamento de capital (art. 196), lucros a realizar (art. 197), limites às reservas (art. 198) e prazo de pagamento (art. 205, §3º).
CVM — Processos e pareceres. Aplicação prática do art. 205, §3º (prazo de 60 dias e dentro do exercício), com decisões e votos que reforçam a interpretação estrita.
PwC / KPMG — notas técnicas sobre o PL 1.087/2025. Estrutura do IRPF mínimo e retenção de 10% sobre dividendos, inclusive impactos para não residentes e cronograma político.
Planalto — Projeto de Lei 1.087/2025 (texto). Síntese oficial do escopo (redução de IR, IRPFM e tributação de dividendos).
Ministério da Fazenda — apresentação oficial. Slides sobre IRPFM, retenção de 10% e parâmetros (limiares de renda).
Observação: o texto final do PL pode sofrer alterações até a votação. As recomendações aqui partem do estado atual do debate e das regras societárias vigentes.
FAQ — Perguntas frequentes
1) Dividendos já voltaram a ser tributados?Não. Enquanto o PL 1.087/2025 não for aprovado e sancionado, permanece a isenção do art. 10 da Lei 9.249/1995. O projeto pode mudar esse cenário, mas ainda está em discussão.
2) Posso “declarar” dividendos em 2025 e pagar em 2026 para preservar a isenção?Para companhias (S.A.), a Lei das S.A. exige que dividendos declarados sejam pagos em até 60 dias e dentro do mesmo exercício social (salvo deliberação que não pode ultrapassar o exercício). Ou seja, declarar em 2025 para pagar em 2026 conflita com a LSA e expõe a companhia e administradores a risco societário. Em Ltda., prevalece o que estiver no contrato social, mas a boa prática é definir prazos claros e observar a coerência contábil.
3) Se o estatuto não falar em dividendo obrigatório, qual é o mínimo?Aplica-se a regra supletiva do art. 202 da LSA: 50% do lucro líquido ajustado. Muitas companhias definem 25% em estatuto, mas isso é opção estatutária, não o padrão legal.
4) Quando posso reter lucros e não pagar o dividendo obrigatório?A LSA admite retenção em hipóteses estritas e documentadas: orçamento de capital (art. 196), lucros a realizar (art. 197) e restrição por risco financeiro com reserva especial para pagamento futuro (art. 202, §§4º–5º). Sem lastro técnico e deliberação formal, a retenção é vulnerável.
5) É possível pagar dividendos “intercalares” (ao longo do ano)?Sim, desde que autorizado pelo estatuto e amparado por demonstrações intermediárias (ex.: balanços trimestrais ou semestrais). Em companhias abertas, observar as regras de divulgação e controles exigidas pela CVM.
6) Dividendos devem ser pagos em dinheiro? Posso pagar em bens?A regra é o pagamento em dinheiro. Pagamento em bens/ativos só é viável com previsão estatutária ou consentimento do acionista, e requer avaliação criteriosa (inclusive de responsabilidades dos administradores e transparência contábil).
7) Como ficam as ações preferenciais com dividendo fixo ou mínimo?Os direitos dos preferencialistas (prioridade, fixo/mínimo, cumulatividade) devem ser respeitados na apuração e distribuição. O dividendo obrigatório convive com essas preferências — é desenho estatutário que define a ordem e o cálculo.
8) “JCP” substitui dividendo?Não. Juros sobre Capital Próprio (JCP) é instituto autônomo (art. 9º da Lei 9.249/1995) com IR na fonte e regras próprias de dedutibilidade (ajustadas pela Lei 14.789/2023). Pode coexistir com dividendos; a decisão é econômica e fiscal.
9) E os sócios/acionistas não residentes?Hoje, dividendos são isentos também para não residentes, observados tratados contra bitributação. O PL 1.087/2025 discute retenção e coordenação internacional; até lá, vale o regime atual.
10) Posso distribuir “estoques” de lucros antigos para aproveitar a isenção?É possível distribuir lucros acumulados sob o regime vigente, desde que haja base contábil e deliberação regular. A ideia de “declarar tudo em 2025” precisa respeitar a LSA (prazos e exercício) e a capacidade financeira da companhia.
11) Quais documentos não podem faltar para blindar a decisão?Ata da AGO/AGE ou reunião do conselho (conforme o caso), demonstrações financeiras/intermediárias, notas explicativas, política de dividendos (quando houver) e, para retenção, orçamento de capital ou cálculo de lucros a realizar, tudo coerente e arquivado.
12) Há risco para administradores?Sim. Distribuições em desconformidade com a LSA, ou retenções sem base legal/documental, podem gerar responsabilização dos administradores (deveres fiduciários) e sanções regulatórias em companhias abertas.
13) O que muda para companhias fechadas vs. abertas?As duas seguem a LSA. Companhias abertas têm camada adicional de disclosure e controles (CVM), inclusive ao declarar intercalares. Fechadas também devem observar a LSA e manter documentação irrepreensível.